sexta-feira, 2 de novembro de 2007

Salvador, o Homem e Textos InConSequentes (excerto)

«Nada do que é terreno consegue
realmente abandonar o sono e só
quem nunca esquecer a noite que
traz consigo consegue fechar o
anel, consegue voltar da intempo-
ralidade do começo à do fim,
consegue empreender sempre de
novo o percurso circular, ele
próprio astro na imutabilidade
do decorrer do tempo, emergindo
da escuridão (...)»

Hermann Broch – “ A MORTE DE VIRGÍLIO”


I
O HOMEM


Salvador percorria as noites, de insónia em insónia, tentando olhar o mundo pelo prisma da noite, nos hábitos, nas vivências, nas rotinas ou desrotinas, nos seus indígenas, fauna bem diversa da diurna, nos cheiros e nas cores da noite. Sim, porque antes das insónias lhe dominarem as noites, homem regrado, Salvador achava que a noite tinha uma cor única: escura. Artificialmente iluminada. E nem se detivera a pensar sobre que cor e tipo de escuridão eram essas que atribuía à noite. Era escura e esse pensamento lhe chegava. Não, não era bem assim, sem ter consciência disso um outro atributo da noite coexistia com o anterior. O de perigo.
Não é que, desde os primórdios, a escuridão sempre representou um factor de perigo para os humanos, dada a sua incapacidade de verem no escuro?
Talvez por algum primevo atavismo, conjugado com factores culturais, a noite detinha, para Salvador, esse atributo, de que se não encontrava consciente.

Um dia Salvador não dormiu. Pensou que algum alimento cuja digestão se houvesse atrasado, apesar de não sentir qualquer tipo de incómodo, seria o responsável pelo facto.
Facto mesmo foi a repetição, noite após noite, da insónia. Curiosamente, para nós, e intrigantemente para ele, o dia a dia decorriam na máxima normalidade e as suas funções eram desempenhadas com eficácia e eficiência, sem cansaço e sem qualquer tipo de nervosismo.
Passaram meses e a situação mantinha-se. Os dias passaram a ter vinte e quatro horas para preencher a seu belo prazer. Mais sete horas e trinta minutos, que era o tempo médio de sono, antes de se tornar um insone.

Salvador sentia-se bem, sentiu-se feliz. Tanta coisa que deixava por fazer por falta de tempo....Quem se não sentiu nada feliz foi a mulher de Salvador, a D. Ermelinda. Ora se tinha algum jeito o marido não dormir, abandoná-la. Sim, abandoná-la, pois, a breve trecho, percebendo a total e continuada ausência de sono e a inexistência de quaisquer sinais de cansaço, Salvador deixou, de todo, de ir ao leito. Para quê perder tão precioso tempo, deitando-se e ficando a olhar para o tecto, para o ar, para o nada, na vã esperança de voltar a ser uma pessoa comum, isto é: com horas de deitar, dormir e acordar?

Nas frias noites, deixava o tálamo conjugal instalando-se, confortavelmente, na sua poltrona preferida que, rapidamente, foi trocada por uma mais moderna, reclinável, com várias posições e extensão, para pernas e pés, onde Salvador se entregava às delícias da leitura, do visionamento de filmes, ao xadrez no computador, (sim, que esse nunca sofria de insónia dado não precisar de dormir,) à construção de puzzles e às paciências, enfim, a uma série de actividades de que gostava e das quais tirava prazer e que sempre considerara boas para a musculação do cérebro, ou, parafraseando o ficcionado, mas não menos célebre inspector Poirot, belga e não francês como insistia em frisar, «as célulazinhas cinzentas».

A D. Ermelinda é que se não conformava e, quanto mais feliz via o marido com tanto tempo, liberto da escravidão do sono, façamos aqui um aparte para realçar que, apesar da bizarra e continuada ausência do tálamo conjugal, como a D. Ermelinda gostava de dizer, não descurava os seus deveres de cônjuge, antes os exercendo mais animadamente facto que, apesar de tudo, não compensava a senhora pelo abandono sentido, dizíamos nós que a infelicidade da D. Ermelinda crescia proporcionalmente à felicidade do marido.

(excerto do Conto "Salvador O Homem, e Textos InConSequentes, a sair em 07 de Dezembro- apresentação no Salão Nobre da Junta de Freguesia de S. Mamede de Infesta, 21h30)

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