terça-feira, 17 de março de 2009

Branca Clara das Neves e os seus gémeos azúis - parte I

Coloca uma palavra no vale da minha
nudez e planta florestas de ambos os
lados para que a minha boca fique
toda à sombra.
Ingeborg Bachemannn


“A concha furada no centro, suspensa no peito por um fino fio entrançado de couro, não queria dizer nada: nem bois, nem linhagem. O cinto de pérolas de marfim, com gravações geométricas e concêntricas, também não tinha ficado do dia de noivado, nem de uma qualquer passagem pela casa das mais velhas.Escolheu a Kihita para viver quando viu pela primeira vez as barreiras e conseguiu ficar longe da serra e esquecer o ruído das árvores em queda, e o cheiro intenso da lenha queimada.Branca Clara das Neves, a possuída do barro, como era conhecida entre os nyaneka, perdera o coração de oleiro, dado por sua mãe, durante uma travessia de que já não tinha memória. Dentro de si, a preto e branco, como numa fotografia, as cores do medo tinham nomes conhecidos: a praga, a peste, a maldição.Por isso, ficara ali quieta a ver o sol em estilhaços no branco do barro, usando as mãos como asas, como garras a juntar fiadas de pérolas de marfim para o penteado das meninas púberes. Ninguém como Branca Clara sabia estender, pelas pontas, longe do barro, a pele de uma vaca escolhida entre as melhores do rebanho para o sacrifício e expô-la ao sol, para os banhos de sal diários.

A fama de muda, artesã e curandeira livraram-na da perseguição dos vizinhos e da certa fogueira como a que vira um dia crescer sobre o corpo da sua mãe, vestida de branco e despedindo-se da vida, dona dos ventos, oiá borboleta.Quando ninguém a via, arava o barro branco e o silêncio.Ninguém soube como se arredondou a sua barriga. Talvez de tanto se alongar sobre o barro ele tivesse fermentado dentro de si e, entre um cacimbo grande e um pequeno cacimbo, dois gémeos azuis, iguais, pequenos, de um azul perfeito saíram de dentro de si. Lavou-os com barro branco protegendo-os das pragas e dos animais do mundo inferior. Saudou o grande senhor do barro, o construtor da cabeça dos homens, o que mistura no barro todas as coisas da natureza: terra, águae ar. O que sopra dentro da boca dos homens o hálito fresco das manhãs.Continuou, muda, a tratar da vida: pequenas contas de marfim, fios de couro cada vez mais finos e mais firmes, criando os gémeos de seu próprio leite, tão branco e tão espesso como o barro, durante mais de três anos. Foi quando saiu do lugar do barro e se juntou às mulheres iniciadas, as portadoras do cinto de casca de ovo de avestruz, senhoras dos caçadores e das bonecas.Para poder ficar, deixou que os gémeos azuis aprendessem a linguagem partida dos novos senhores. Enquanto estes cresciam e ficavam pastores, devagarinho, Branca Clara, a filha da borboleta, a que um dia tinha cruzado o mar, ocupou-se das bonecas. (...)"
Ana Paula Tavares (escritora angolana)
continua
Dada a extensão deste fabuloso texto será terminado numa 2ª postagem.

sábado, 28 de fevereiro de 2009

sobrevivência

o VENTO atingiu a solitária árvore. perdida na VASTEZA da planície, sentinela única daquele imenso OCEANO de terra calcinada a perder de vista a BATIDA forte do ar imprimiu-lhe uma OSCILAÇÃO. uma SACUDIDELA imprimiu-lhe um estremecimento semelhando hesitação na decisão a tomar. a SITUAÇÃO era desesperadora. a árvore, SOBERANA expressão de vida sentiu a seiva correr mais forte bem por DENTRO de si animando cada tronco, cada ramo. sentiu-se perdido NAVIO no meio de longínquo e inóspito mar. MORFEU, sentado num dos seus braços, trauteava canção de embalar enquanto fazia soar sua lira. a árvore sabia que não podia ceder. o sono seria fatal. a última expressão de vida desapareceria da superfície da imensa planície que se estendia a perder de vista. onde antes existiam florestas, bosques, verdes prados cheios de vida, animais de todas as espécies, caçando, preguiçando ao sol, lançando aos ares suas vozes. maviosas umas, quase assustadoras pela força e potência outras. a árvore lembrou com ternura o TIGRE que, durante anos adoptara os seus ramos como leito e como ponto de vigia de onde detectava caça ou adversários. pensou que, por todos eles, não cederia. o sono arrastaria a morte. a seiva pararia e ela, guardiã da vida, desapareceria. com ela toda a esperança de renascimento.

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

a minha incomum casa

a casa tem dimensões incomuns. diria, mágicas. é uma casa normal. só na aparência. Se deixarmos, se abrirmos todos os sentidos para além dos cinco que a ciência refere a casa mostra-se em todo o seu surpreendente esplendor e capacidades.
é um andar aparentemente normal com as divisões padrão para prover às necessidades e hábitos humanos tanto interiores como exteriores dado possuir varandas amplas e espaçoso terraço.
tem a particularidade de, se o nosso estado de espírito com ela estiver em total harmonia, abrir portas para outras dimensões. assim, nas varandas entramos num outro espaço-tempo e, num piscar de olhos, encontramo-nos num Monte Alentejano, fruindo a paisagem a luz e o calor do sol e os perfumes da planície levemente ondulante. dias há em que a rua para a qual ficam viradas desaparece e o mar se alonga por um areal que brilha com uma tonalidade branco-doirada. no terraço acontece uma outra realidade. um passo, um parar a respirar fundo e ali estamos numa quinta envolta por um bosque, com as características dos bosques a norte.
dentro de casa descobri ainda um outro portal, tão inesperado e surpreendente como os dois primeiros. por tudo isto estou grata à casa que tanto me dá.

segunda-feira, 19 de janeiro de 2009

Canção, poema de Cecília Meireles

(Se clicares na imagem esta amplia e permite melhor leitura)